O antropólogo Paulo Lima considerou hoje que a classificação como Património da Humanidade pela UNESCO deu “visibilidade” ao cante alentejano e “dignidade” aos cantadores, mas lamentou que falte ainda uma estratégia transversal para a sua valorização.
“A inscrição [na lista da UNESCO] trouxe visibilidade ao cante e dignidade a quem cantava. Quer dizer, não trouxe, tornou-a presente, houve uma mais-valia associada ao cante, é algo que se ostenta com orgulho”, argumentou à agência Lusa o antropólogo, que coordenou a candidatura.
Em relação a esta manifestação cultural como a outras com ‘selo’ da UNESCO, no entanto, “ainda falta estratégia, há falta de noção de gestão”, afirmou, alertando que “continua a não haver, e é necessária, uma política transversal” em Portugal para bens classificados: “Construímos facilmente ‘selos’, com ‘recortezinhos’ e fotografias, mas depois somos maus a ‘colá-los nas cartas”.
Em jeito de balanço dos 10 anos desta manifestação como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que se assinalam hoje, Paulo Lima afiançou que a inscrição permitiu também que “haja pessoas que hoje vivem do cante”.
“E eu acho que isso é uma coisa fantástica. O cante é uma coisa do presente e, como coisa do presente, responde àquilo que são seus contextos e desafios”, vincou.
O antropólogo defendeu igualmente, da “observação empírica” que faz, pois não está agora ligado à área, que o cante “continua a ser uma forma de quebrar o isolamento”.
“Continua a ter, em muitos lugares essa função de coesão e de combate à exclusão”, disse, embora detete agora “uma nova realidade do cante” ou, pelo menos, o aprofundar “de algo que já se adivinhava e que talvez apenas tenha sido acelerado”.
“Neste momento, existe uma outra realidade do cante, em que surgiram, não diria tanto grupos corais, mas projetos em torno do cante”, argumentou.
Por isso, há “aqueles que continuaram a manter uma estrutura” tradicional, como é o caso dos grupos corais, e “projetos musicais que, agarrando no cante, procuram posicionar-se em fronteiras” musicais.
“E ainda há projetos claramente de fusão e de procura de algo entre o cante e outras práticas e estéticas”, disse.
A classificação, insistiu, “veio por um lado acelerar fenómenos que já vinham de trás, mas, por outro lado, também abriu perspetivas diferentes que, muitas vezes, chocam os mais puritanos, os mais conservadores do cante”.
O cante alentejano é, todavia e por natureza, na opinião do antropólogo, “um fenómeno vivo”. E, ao olhar-se para a sua história, é possível ver que “o cante não foi sempre isto que é hoje reconhecido como cante”.
“Aquilo que nós hoje chamamos cante alentejano, que tem uma forma de estar no palco, de caminhar, que tem um repertório, que tem um traje, é uma coisa que é construída no pós-Segunda Guerra Mundial em Beja, como uma pequena experiência, em finais dos anos 30” do século XX, afiançou.
Porque, “segundo o cancioneiro com pauta mais antigo a que se pode aceder, que é o de Serpa”, o cante antes “era muito rápido e era tudo com coreografia e com viola”, mas, com o passar do tempo, “perdeu essas características” comparou.
Considerando que o cante tem de ser encarado como “um património vivo”, Paulo Lima defendeu que “deve ser reposicionado o papel dos detentores” deste canto coletivo, “sejam eles quem forem, até pode ser um imigrante”.
“Temos de libertar o cante de curadorias impositivas, de ideias feitas, de que é qualquer coisa perdida lá no passado e que tem a ver com uma identidade de que muita gente fala, mas que, se for espremida, não se percebe bem do que se está a falar”, frisou.
Esta prática musical, sendo “viva”, é natural que “vá mudando”, opinou, insistindo que, “em cada momento histórico, o cante foi-se sempre reconstruindo e saiu por cima”
“E algumas destas figuras importantes hoje nesses projetos musicais, apenas adivinham uma nova reconfiguração do cante”.